Por Cypress Atlas. In: Transcending: Trans Buddhist Voices. Kevin Manders and Elizabeth Marston (Ed.). North Atlantic Books: Berkeley, California, 2019 (ainda sem tradução para o português)
Tradução, adaptação cultural e revisão para o português: monge Yakusan (Budismo Zen)
A passagem mais pessoalmente validadora de qualquer texto sagrado, para este escritor queer não-binário, andrógino e pansexual, é o sétimo capítulo do que algumas vezes é chamado Vimalakirti Nirdesha Sūtra ou mesmo O Ensinamento Sagrado de Vimalakirti. O capítulo lida principalmente com a ideia do não-eu. Uma boa parte dele é um diálogo entre um personagem chamado Reverendo Shariputra e outra personagem referida simplesmente como a Deusa. A seção do diálogo da identidade trans está como segue, traduzido por Robert Thurman:
Shariputra: Deusa, o que a impede de se transformar para além do seu estado feminino?
Deusa: Embora eu tenha buscado o meu estado feminino”por 12 anos, eu não o encontrei ainda. Reverendo Shariputra, se um mágico fosse encarnar uma mulher através da magia, você perguntaria a ela o que a impede de se transformar para além do seu estado feminino?
Shariputra: Não! Tal mulher realmente não existiria; então, o que haveria para transformar?
Deusa: Justamente isso, reverendo Shariputra, todas as coisas realmente não existem. Agora você pensaria: “O que impede alguém, cuja natureza é a de uma encarnação mágica, de se transformar para além de seu estado feminino?”
A Deusa então transforma a si mesma na forma do Reverendo Shariputra e ele na forma dela. Ela, então, ecoa a questão dele de volta para ele, agora em sua nova forma forma feminina:
“Reverendo Shariputra, o que o impede de se transformar para além do seu estado feminino?”
Shariputra fica chocado com a sua transformação, e a Deusa continua a explicar esse tipo de ideia dualista de gênero, como segue:
“Todas as mulheres aparecem na forma de mulheres da mesma forma que o ancião aparece na forma de uma mulher. Ainda que não sejam mulheres na realidade, elas aparecem na forma de mulheres. Com isso em mente, o Buda disse: “Em todas as coisas, não há nem masculino nem feminino”.
A Deusa transforma ambos os corpos de volta para suas formas originais e pergunta a Shariputra o que ele fez com sua forma feminina, e o diálogo continua:
Shariputra: Eu não fiz nem mudei isso.
Deusa: Justamente isso, reverendo Shariputra, todas as coisas nem são feitas nem mudadas, e e como elas não são feitas e não mudadas, esse é o ensinamento do Buda”.
Existe um ensinamento básico no budismo, e particularmente no zen budismo, do vazio, ou shunyata. É um conceito bastante difícil de pensar ou definir porque “não é um conceito, pois não há conceituação no verdadeiro Zen; e não existe pensamento Zen, pois não existe pensamento no verdadeiro Zen. Em vez disso, nada é algo experimentado e não apenas conceituado. No entanto, nada é absolutamente nenhuma “coisa”, pois não há “coisa” a ser experimentada no Zen: o experimentado, o experimentador e a experiência é tudo um e a mesma coisa”.
A experiência de ser não-binário é uma experiência do vazio. É uma afirmação e um reconhecimento do “nada” inerente que está sob o conceito de gênero em si. Gênero é simplesmente um conceito e, como todos os conceitos, carece de qualquer existência inerente.
Durante toda a minha vida, eu me identifiquei fora do gênero binário. Quando eu era criança, jogava dentro e fora de todos os papéis de gênero, fingindo ser um grande número de personagens sem levar em conta qualquer limitação de gênero. À medida que fui crescendo, aprendi mais e mais sobre o que se esperava de mim, de acordo com a maneira como os outros identificaram meu gênero. Essas expectativas nunca fizeram qualquer sentido para mim, e tentar me encaixar nas regras sociais estritas sobre o que um “menino” é ou faz foram a causa de muita vergonha, alienação, solidão, confusão e frustração ao longo da minha vida. A razão pela qual a ideia de śūnyatā, e particularmente a passagem do ensinamento de Vimalakīrti, é tão pessoalmente validadora para mim é porque descreve uma realidade com a qual tenho ressoado durante a maior parte da minha vida: que a dualidade é uma ilusão.
Para alguém como eu, lidando com a frustração de estar em meio a esse paradigma “masculino”e “feminino”, colocar a ideia de shunyata no contexto da identidade de gênero é extremamente libertador. Alivia todos os sentimentos de solidão e isolamento por afirmar que esse vazio é realmente a verdadeira realidade de todos os fenômenos. Além de todas as reivindicações de identidade “masculina” ou “feminina”, está essa completa falta de existência inerente em primeiro lugar. Se não houver existência verdadeira e, como escreve Alan Gullette, “O mundo dos fenômenos (samsara) é um fantasma que é conjurado por um fantasma (maya)”, então toda a expressão do “eu” é simplesmente uma ação performática que existe com a mesma natureza que a performance de qualquer tipo de personagem, tais como aqueles que mencionei em minhas brincadeiras de infância. Se isso é verdade, então qualquer identidade de gênero é tão válida quanto quaisquer outros fenômenos que nomeamos ou reivindicamos a existência. Portanto, nós estamos absolutamente certos em questionar, examinar e e ficar confusos com o paradigma da identidade binária, porque é um paradigma que existe por completa ilusão.
Muito elucidativo o texto.