O não-adeus

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Setembro Amarelo é o mês mundial para a visibilidade de um tema tão delicado, cheio de tabus e doloroso que urge ser pensado todos os dias – o suicídio. Das mais variadas causas estão a pressão social da competitividade ao desespero afetivo ou econômico. Há pessoas que se suicidam por nunca terem esperança ou se sentir vivas. E na pauta da diversidade LGBT+ o peso recai na inaceitabilidade e dificuldade sobre a orientação sexual por si, pela família, religião, trabalho e sociedade. Segundo a OMS em boletim de 2019, a cada 40 segundo uma pessoa tira a vida no mundo.

Estima-se que pessoas LGBT+ cometem o suicídio cinco vezes mais e muitas delas não expressam suas razões antes do ato. Os boletins médico-legais ou policiais por vezes ficam ausentes de dados que serviriam a entender as causas e prevenir o ato suicida por meio de políticas sociais. De toda forma, os dados são alarmantes.

Precisamos entender que um suicida não é alguém frágil para com a vida, mas aquele que entendeu a morte como forma de encerrar seus sofrimentos, sufocos e desesperos. Não é um ato de coragem e nem de covardia. O suicídio é o ato da desesperança. Associar coragem com suicídio é glamorizá-lo, torná-lo válido. Corajosos são sempre valorizados, e não se deve valorizar o ato suicida.

“Em uma pesquisa realizada com 8.918 LGBT+, identificou-se que pelo menos 62,5% já pensou em se matar e 70% destes já sofreu LGBTFobia. O maior percentual que já pensou em suicídio foram os homens trans (87,9%), as pessoas não-binárias (86,7%) e as de gênero fluído (82,2%). Quem se identificou como andróginas, queer e mulheres trans também apresentaram percentuais altos, acima de 70%. (Ensaios sobre o perfil da comunidade LBGT+, IBDSEX)

Em nossas atitudes, não devemos julgar nem condenar, sobretudo espiritualmente o pós-morte para com seus familiares. “O suicídio é difícil de entender, o assassino e o morto são a mesma pessoa, você não sabe para onde direcionar sua raiva”, diz o monge Zen Ittetsu Nemoto do templo Daizenji à revista Tricycle. É certo que cada religião interpreta o ato de formas diferentes, o Budismo reprova o ato, pois sem estar com uma mente profundamente desperta entende-se resultar em um renascimento sofrível no Samsara, o ciclo de nascimentos e mortes. Seja como for, precisamos trazer palavras de reconforto e compaixão aos familiares e amigos em luto, sem julgar o ato que levou a pessoa a cometê-lo. Neste sentido, a psicóloga Sonylena Sonnemaker acrescenta: 

“Acredito ser também de extrema importância, o olhar compassivo e acolhedor sobre os familiares de quem cometeu o suicídio. Pois a família ao ser noticiada do ocorrido, mergulha num caos de emoções que vão da estupefação à raiva, ao desespero, à incompreensão e principalmente a culpa. A culpa passa a ser um perseguidor implacável, pois a família não consegue compreender o que houve, não entende os motivos, se questiona onde foi que errou, o que ela não percebeu, como ela não conseguiu ajudar. Há um profundo sentimento de impotência diante de uma morte que não se compreende e que portanto é destituída de significados. É necessário desenvolver um olhar de compreensão sobre essas famílias, pois perante a sociedade elas são julgadas como disfuncionais, distantes, negligentes, incapazes de ajudar quem necessitava, incapazes de enxergar o óbvio. E a verdade é que o suicídio não é óbvio. Na há previsão do que pode acontecer. E de verdade por melhor, amorosa e presente que a família possa ser, mesmo um de seus membros podem cometer este ano, e a família não enxergar nenhum sinal, ou porque não teve sinal, ou porque não foi capaz de enxergar. Então penso que neste mês de Setembro, além de sermos cuidadosos com quem porventura nos procure; com nossa escuta e também encaminhamento para ajudar profissional, estender esse acolhimento sem julgamento aos familiares, que também precisam de amparo neste momento de grande dor.”

É obsoleta a ideia de que “quem vai se matar não avisa”. Pessoas cometem suicídio, avisando ou não. E que precisamos – com urgência – parar de falar (assim como falamos da depressão, que também é uma grande contribuinte para o suicídio) que é falta do que fazer, ou que é coisa da cabeça da pessoa. E que não é vergonha nenhuma, como a sociedade nos faz pensar, em procurar ajuda. A gente não precisa ser forte o tempo todo e tá tudo bem. 

Precisamos prevenir o suicídio constantemente, mas em vida, a começar pela escuta do outro, reconhecer seus descontentamentos e angústias, buscando o valor e o sentido da vida. Neste mundo consumido por desejos, competições e comparações, o significado da vida se perde em um ambiente exigente por aparências, posses, status, aceitações sociais e outras artimanhas das mentes imersas nos três venenos mentais (klesha) – a ignorância, a ganância e a ira – ameaçando constantemente a percepção da vida, destruindo seu sentido e propósito. Sem julgar, devemos acolher em solidariedade e compaixão os que ficam Nesta Margem do Samsara e meditar aos que foram ir-nascer na Outra Margem, da Terra Pura do Buda.

E como o Buda Shakyamuni reagiu a este fato em seu Sangha? Encontramos dois episódios nos Sutras, sendo um no Samyutta Nikaya IV.23 lemos sobre a morte do Venerável Godhika: 

“Assim de fato é como os determinados agem: 

Eles não têm apego à vida.
Extirpando o desejo pela raiz,
Godhika realizou o parinibbana.”

“Com a conquista do exército da Morte,
não retornou para uma nova existência,
ao extirpar o desejo pela raiz,
Godhika realizou o parinibbana.”

​​E no Majjhima Nikaya, 144 sobre o suicídio do Bhikkhu Channa:

“Há vacilação naquele que é dependente, não há vacilação naquele que é independente; onde não há vacilação, há tranquilidade; onde há tranquilidade, não há preferências; onde não há preferências, não há ir e vir; quando não há ir e vir, não há falecimento e renascimento; quando não há falecimento e renascimento, não há o aqui nem o além, nem o que está entre os dois. Esse é o fim do sofrimento.”

“Então, o venerável Sariputta foi até o Abençoado e depois de cumprimentá-lo, sentou a um lado e disse: Venerável senhor, o venerável Channa usou a faca. Qual será o seu destino, qual será o seu futuro percurso?”

“Sariputta, o bhikkhu Channa não declarou para você a pureza dele?” “Venerável senhor, há um vilarejo Vajjia chamado Pubbajira. Lá o venerável Channa tinha famílias que eram amigas dele, famílias que eram íntimas dele, famílias que mereceriam censura.” 

“Há essas famílias que eram amigas do bhikkhu Channa, Sariputta, famílias que eram íntimas dele, famílias que mereceriam censura; mas eu não digo que por isso ele seria censurável. Sariputta, quando alguém deita este corpo e se apega a um novo corpo, então eu digo que esse alguém é censurável. Não houve nada disso no bhikkhu Channa; o bhikkhu Channa usou a faca de modo puro.”

Estas duas passagens referem-se às mentes despertas e o encerramento desta preciosa vida não gerariam um mal carma para um novo renascimento, por já terem executado plenamente seu treinamento nesta vida. O Buda não faz juízo de valor, condenando ou reprovando. Se há uma luta entre o bem e o mal, ela está apenas dentro de nossos próprios corações, onde o hábil e o inábil competem. 

O Budismo é um caminho de princípios, analisa o indivíduo, não determina como deve ser. A questão é a natureza do sofrimento do ser humano, as causas e o caminho a encerrá-lo e tem a lei do carma como origem dos tormentos na incompreensão do anitya(impermanência), o dukkha (sofrimento) e o anatman (não-eu). 

O tema não é exaustivo e requer muita reflexão. Mesmo dentre as comunidades budistas podemos encontrar interpretações distintas. O suicídio é uma forma de morte, porém o que está em jogo é o que antecede o ato, ou seja, a desvalorização da vida, a desesperança, a mente obscurecida por tormentos extremos.

​Como o Budismo pode contribuir com a prevenção do suicídio?

A vida é preciosa e rara de se obter, deve ser preservada por ser a condição propícia ao Nobre Despertar. No Grande Sutra da Vida Imensurável (Daimuryojukyo, jap; Sukhavativyuha Sutra, sânsc.) encontramos – “Obter uma vida humana é extremamente difícil”. Nesta simples frase encontramos a profundidade da concepção budista de que vivemos a vida como sendo vidas manifestadas por incontáveis causas e condições, sejam pelos nossos pais, ancestrais ou inúmeros outros seres e coisas que nos permitem viver. Paira uma importante responsabilidade destas condições que nos propiciam a vida e devemos envidar esforços para preservá-la.

As bases do pensamento budista gira em torno dos três venenos mentais ignorância, ganância e raiva representados na roda da vida Bhavachakra, , concatenados às diversas causas e condições. Nas Quatro Verdades, proferidas pelo Buda Shakyamuni, nos alerta na Primeira delas que a vida é insatisfatória, desequilibrada e atormentada por causa do apegos aos desejos, a Segunda Verdade, gerados pelos três venenos mentais acima citados. A extinção destes apegos ou aprisionamentos, a Terceira Verdade é a extinção e a causa da libertação por meio dos Oito Caminhos exposta na Quarta Verdade: o Entendimento correto, o Pensamento correto, a Linguagem correta, a Ação correta, o Modo de Vida correto, o Esforço correto, a Atenção Plena correta e a Concentração correta.

Adotar ainda uma nova perspectiva pelo caminho ético das Seis Paramitas ou Perfeições que se relacionam entre si. A começar com Dana, a doação, se refere ao que é externo a nós em recursos, compreensão, empatia. O que podemos doar? Escuta, atenção, carinho, respeito, acolhimento. As Perfeições seguintes como Shila Paramita, o exercício de uma atenção profunda ao que está ao nosso redor, ao que recebemos, o que fazemos, com quem estamos, é treinar, observar o pensamento, a fala e a ação; o Kshanti Paramita, a capacidade de respeitar, de transformar, a cada encontro com algo ou alguém podemos transformar, para bem ou para mal; o Virya Paramita, o esforço, a energia, a perseverança para exercitar todos os demais, produzindo sementes necessárias para transformar; o Dhyana Paramita, a meditação, o parar e acalmar a mente para atuar com clareza; e por fim o Prajna Paramita, sabedoria, compreensão, insight, o olhar ao redor pela sabedoria búdica. Procure sempre um centro de prática budista tradicional e um professor devidamente treinado para ajudar neste sentido.

Se conseguirmos adotar e exercitar ainda que um pouquinho os Oito Nobres Caminhos e as Seis Perfeições ao logo do nosso cotidiano possibilitaremos o início do transformar e ressignificar da vida como forma de prevenir um ato de desespero. Procuremos exercitar, assim, nossa Compaixão por meio da Sabedoria do Dharma e trazer significados mesmo aos desequilíbrios que a vida pode proporcionar, preservando a vida para trilhar o Nobre Caminho do Despertar e do Supremo Nirvana. Contudo é importante frisar que cometer o ato suicida, devido às circunstâncias específicas que o levaram a fazer, não significa falha ou fraqueza dentro da prática budista. No olhar budista, o Buda acolhe a todos, mesmo os que tiraram a própria vida.

Se perceber alguém em uma condição confusa sobre a vida, converse e acolha; se você estiver nesta condição, procure um amigo de confiança, um profissional da área médica ou psicológica ou ligue 188.

Texto do Rev. Jean Tetsuji, Ordem Shin Otani, budismo Terra Pura

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