O Dharma não é nem masculino e nem feminino

Neste mês especial em que celebramos a luta feminina pelos direitos das mulheres e pela igualdade de gênero, gostaríamos de compartilhar uma grande autora budista que fez parte de importantes discussões sobre o papel da mulher dentro do Budismo na história desta tradição e na contemporaneidade.

Estamos falando de Rita Gross, uma americana que nasceu em 1943 e foi simplesmente a primeira acadêmica a estudar as mulheres na religião, contribuindo para o desenvolvimento dos estudos femininos e de gênero nesse campo. Gross conseguiu seu PHD em 1975 em História das Religiões na Universidade de Chicago, sendo nomeada a chefe do departamento Mulheres e Religião, uma nova seção da Academia Americana da Religião. Desde então, contribuiu massivamente para o desenvolvimento de pesquisas feministas em Estudos da Religião (Ciência da Religião, como é chamada a disciplina no Brasil), lançando uma infinidade de artigos, alguns livros de sua autoria e diversos outros em que organizou produção científica de grande valor para quem hoje se debruça sobre o cruzamento das chaves de leitura: gênero e religião.

Ainda na década de 1970, Gross se aproxima do Budismo e toma refúgio sob supervisão de Chogyam Trungpa Rinponche, tornando-se uma praticante da tradição Tibetana. Com o tempo, seguindo uma longa jornada de estudos, práticas e iniciações, ela é nomeada professora avançada e passa a ensinar no Lotus Garden Center, nos Estados Unidos, liderando inúmeros grupos de estudos, realizando diversas palestras e enfim, contribuindo também com importantes textos feministas dentro do Budismo.

Seu livro mais famoso é o já clássico “Budismo depois do Patriarcado”, lançado em 1993 em que traz uma importante discussão histórica sobre o papel das mulheres dentro do Budismo, visibilizando o Saṅgha feminino e sua contribuição no próprio desenvolvimento da tradição ao longo do tempo, além de promover, através do feminismo, metodologias para entender o Budismo através da ótica do gênero e ferramentas de práticas budistas que também utilizariam as ideias do movimento da luta feminina para buscar igualdade de gênero dentro desta religião.

Segunda a autora, os estudos feministas budistas assumiram a tarefa de encontrar um “passado preciso e utilizável”, resgatando o valor e contribuições do Saṅgha feminino para o Budismo. Par a autora, o Saṅgha feminino foi invisibilizado ao longo de uma construção ideológica dos textos, mas também por parte da produção de estudos científicos neste campo religioso no passado. Neste sentido, uma análise feminista da tradição budista teria que lidar com um androcentrismo quádruplo: (1) a seleção de documentos e a priorização de determinadas experiências geralmente tendem a construir um conjunto de valores androcêntricos: histórias de homens, declarações de homens etc.; (2) ainda que registros significativos sobre mulheres tenham sobrevivido, as tradições budistas penderam a ignorar estas histórias e favorecer heróis masculinos; (3) a maioria dos estudos acadêmicos também são androcêntricos e geralmente endossam preconceitos; (4) o próprio budismo contemporâneo, asiático ou não, continua implacável em seu androcentrismo (GROSS, 1993).

Seu último livro foi lançado após sua morte, Gross veio a falecer em novembro de 2015, com 72 anos de idade. “Budismo para além do gênero” foi publicado 3 anos depois de seu falecimento e é um texto que consolida sua perspectiva teológica, ou melhor, budológica, acerca de uma hermenêutica feminista, ampliando as discussões para além do binarismo homem-mulher.

Neste livro Gross nos relembra algumas passagens importantes do cânone em que o Buda deixa claro que o caminho do Dharma para a superação do Saṃsāra, é, também, um caminho para a superação do gênero. Neste trabalho, a autora reconhece a importância da identidade de gênero enquanto luta pelos direitos de igualdade e conquista de direitos humanos na sociedade mundana, porém, chama atenção para o nível supramundano em que devemos, pelo menos, reconhecer que a ideia de gênero é uma concepção vazia e que para o Buda, seria necessário que nós esvaziássemos também esta percepção dentro de nós. Somente superando a ideia de nosso próprio gênero, seria possível também superar dukkha (o sofrimento que provém de uma profunda insatisfação natural dos seres).

Apesar de o budismo não possuir uma concepção criacionista em seu corpo filosófico e doutrinário, textos creditados ao Buda como o Aggañña-sutta descrevem como seres humanos vieram a desenvolver seus corpos sexualmente generificados. Neste discurso, o Buda conta que no princípio os seres eram sem forma e sem distinções de gênero ou órgãos sexuais, sobrevivendo a partir de alimentos que surgiam espontaneamente, sem a necessidade de trabalhar. Ao longo do tempo, estes seres desenvolveram ambição e apego aos alimentos que surgiam de forma espontânea e passaram a criar formas grosseiras e a se distinguirem entre belos e feios. Apenas com a escassez destes alimentos e a procura por outros (o Buda cita o consumo de arroz cru), os seres ganharam órgãos sexuais e corpos generificados. Nesta visão cosmológica, é importante ainda frisar que ambos os corpos humanos generificados surgem simultaneamente, diferente da visão cristã criacionista em que o homem surge primeiro e posteriormente a mulher, derivada deste, formando assim uma teologia que pressupõe uma hierarquia e relação de subalternização da mulher ao homem (GROSS, 2018).

Através desta ideia de surgimento do corpo generificado, que em termos doutrinários se desencadeia através das relações carmicas onde cada um de nós temos, e a partir disso do surgimento dos agregados através do conceito de Originação Dependente, o Buda indica portanto que deveríamos retornar àquelas formas neutras, onde o gênero e a sexualidade não existiam, não eram importantes. É claro que há maneiras da nossa mente moderna, contemporânea, entender isso, que não é a literalidade da cosmologia budista. O Buda não pretendia que voltássemos a ter corpos ausentes de órgãos sexuais e traços generificados, como um ideal andrógeno ou mesmo “genderless”, sem gênero. Podemos entender isso de uma maneira psicológica, em que deveríamos esvaziar os significados mundanos que o gênero e a sexualidade nos impõem para percebermos o quanto estes conceitos podem nos aprisionar, ainda que busquemos liberdade ou utilizemos estas ideias na luta por direitos igualitários na sociedade. Gross (2018) cita o fundador da escola Zen japonesa, Sôtôshû, Dogen Zenji, que diz: “Estudar o caminho da iluminação é estudar o Eu (self). Estudar o Eu é esquecer o Eu.” Neste sentido, precisamos entender profundamente nossa identidade de gênero, abraçar esta identidade de gênero, bem como nossa sexualidade. Porém, o caminho da iluminação, ao mesmo tempo que é compreender, é também esquecer, superar.

Há uma passagem nos sutras que diz o seguinte: “Bhikkhus (monges), o que não é de vocês, abandonem. Quando vocês tiverem abandonado, isso os levará ao bem-estar e à felicidade. E o que é isso, bhikkhus, que não é de vocês? A forma não é de vocês, abandonem-na… O sentimento não é de vocês, abandonem-no… A percepção não é de vocês, abandonem-na… Os impulsos espontâneos não são seus, abandonem-nos… A consciência não é de vocês, abandonem-na. Quanto vocês abandonarem isso, isso os levará ao bem-estar e à felicidade.” (Majjhima Nikāya)

Em outra passagem o Buda é mais específico nas questões do gênero quando orienta monges e monjas o seguinte: “Um homem, bhikkhus, cultiva internamente sua capacidade masculina, seu comportamento masculino, sua aparência masculina, seu aspecto masculino, seu desejo masculino, sua voz masculina, seus acessórios masculinos. Ele se alegra por estas questões e se apega elas…. Desta forma, um homem não transcende sua masculinidade. Um homem, bhikkhus, não cultiva internamento sua capacidade masculina (…). Desta forma ele não se alegra por estas questões e não se apega a elas. É desta forma que um homem transcende sua masculinidade.” (Discursos numéricos, livro dos dez, sutra 51)

Estes são trechos trazidos à tona por Gross (2018) para discutir a prisão dos gêneros e como podemos nos libertar disto, o último trecho é repetido igualmente para as mulheres, apontando que tanto homens quanto mulheres, como qualquer pessoa, deve, ao buscar a iluminação, superar o gênero.

Nós aqui na Rainbow Sangha Brasil gostamos muito da concepção sobre um ideal “feminista budista” estipulado pela Rita Gross (1993, p.127-28), e gostaríamos de encerrar este texto e essa homenagem ao 8 de março com sua explicação:

O feminismo envolve “a prática radical da co-humanidade entre mulheres e homens”. Concentro-me em cada palavra da definição. “Radical” significa simplesmente “ir à raiz das coisas”, uma abordagem muito budista às grandes questões existenciais. No Budismo, não se descansa na superfície das coisas, nas aparências ou entendimentos convencionais. O feminismo nos pede para questionar arranjos e estereótipos convencionais de gênero de uma forma igualmente radical. O Budismo, estranhamente, nunca aplicou o seu radicalismo habitual aos estereótipos e arranjos de gênero que produz e utiliza.

Passando junto ao fim da definição, nota-se que a ordem convencional das palavras foi invertida para “mulheres e homens”. A atenção séria à precisão linguística sempre foi uma preocupação da filosofia budista, embora o Budismo não considere as expressões verbais como capazes de capturar a verdade última. O feminismo também é sério em relação às palavras, muitas vezes para exasperação daqueles que não conseguem ver a ligação sutil entre linguagem e consciência e, portanto, objetiva ao uso de “ela” como um pronome genérico. Não em todos os casos, mas, neste caso, a ordem convencional das palavras é invertida como um projeto deliberado de consciencialização.

No entanto, igualmente importante, é a ênfase na co-humanidade de homens e mulheres. Ou seja, os homens também podem tornar-se seres humanos plenamente integrados. Com esta declaração, estou a dissociar-me das versões de feminismo que vêem os homens como seres impraticáveis, essencialmente defeituosos que não conseguem ultrapassar o patriarcado, sexista, e misóginos, apesar do facto de esses valores estarem a destruir o planeta e a conduzir inevitavelmente à guerra, opressão e violação.

O Budismo é, em sua raiz, uma “prática”, uma disciplina espiritual; várias técnicas de meditação são o coração da tradição, e o seu método para alcançar os seus objetivos de calma, discernimento e libertação. A “teoria”, ou filosofia, no Budismo cresce da prática e dá ao meditador alguma motivação e fé, mas a filosofia seria uma ajudante, e não a líder, da tradição. As feministas, mais habituadas à predominância ocidental da teoria sobre a prática, são propensas a falar de “teoria feminista”, mas o feminismo envolve realmente uma reorientação fundamental da mente e do coração que não pode dar frutos se for meramente teórica. Para ser eficaz, o feminismo precisa de se tornar uma prática contínua de mudança da linguagem, das expectativas, das ideias de normalidade, o que acontece assim que as coisas “clicam”, assim que se “acorda”, usando a linguagem budista, para a verdade fundamental e ultrajante do feminismo da co-humanidade de mulheres e homens.

Que possamos praticar, cada vez mais, todes nós, mulheres (cis ou trans), homens (cis ou trans, não-bináries, intersexos, independente de nossa sexualidade, vamos todes pôr em prática um feminismo budista e mudar esse mundo juntes!

Referências Bibliográficas:

GROSS, Rita M. Buddhism After Patriarchy : A Feminist History, Analysis, and Reconstruction of Buddhism. New York: State University of New York Press, 1993.

GROSS, Rita M. Buddhism beyond gender: liberation from attachment to identity. Boulder: Shambhala, 2018

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