Rainbow Sangha1, por que comunicar uma comunidade budista LGBT+2?
Antes de iniciarmos uma discussão a respeito da necessidade do surgimento de uma comunidade budista LGBT+, é preciso estabelecer alguns esclarecimentos sobre a doutrina desta religião. Entender o pensamento budista é essencial para discutirmos mais profundamente as questões que envolve a exegese dentro da própria comunidade sobre a pauta da diversidade.
O Budismo é uma das religiões que não problematiza o gênero e tão pouco penaliza a diversidade sexual. A questão central do Budismo diz respeito à natureza do sofrimento do ser humano, suas causas e o caminho para suspender e encerrá-lo. Portanto, os parâmetros éticos e morais que orientam a vida de um praticante budista, seja ele leigo ou monge, é calcado pela redução e dissolução do sofrimento. Esta é o critério e medida cruciais que configuram o certo do errado numa sociedade que é regida pelo budadharma (ensinamentos budistas).
Em sua realização, o príncipe Siddharta Gautama, já na ocasião o Buda (o desperto) ou como também era chamado, Shakyamuni (o sábio do clã dos Shakyas) ou ainda como ele chamava a si mesmo, Tathagata (assim vindo, assim ido), identificou a realidade dos fenômenos e postulou não apenas a gênese do sofrimento como também ensinou em detalhes os elementos que compõe o esqueleto do funcionamento destes fenômenos que acarretam em sofrimento.
Para o Buda, todo fenômeno era destituído de natureza intrínseca, ou seja todas as coisas são vazias de significado (sûnyatâ ou vacuidade) e aos seres esta ideia se aplica à visualização do não-eu, ou seja anatman, uma concepção filosófica que contrapõe o pensamento vigente de sua época, a ideia de atman. Para o hindu, tudo no universo era provido de uma essência em matéria de realidade individual, que faz parte de um todo absoluto, brahman, numa realidade cósmica. (MIZUNO, 2003)
Se nada no universo continha uma natureza intrínseca, tão pouco permanente, os fenômenos surgiam, segundo o Buda, através de um fluxo contínuo de uma relação mútua entre causas e consequências que são explicadas pelo princípio de Originação Dependente (pratítya-samutpâda). Este príncipio, que também é chamado de causalidade, pode ser resumidamente explicado como a interdependência entre todos os fenômenos, ou seja, algo existe por causa de outro algo e estas relações condicionam o surgimento de todos os fenômenos.
A gênese destes fenômenos, ou seja, os princípios deste condicionamento, é explicado através da ideia de doze elos que formam estes fenômenos no universo, são eles: Ignorância (avidyâ), Ação intencional (samskara), Consciência (vijãâna), Nome-forma ou Mente-corpo (nama-rupa), Seis sentidos (ayatanas), Sensação (sparsha), Sentimento (vedana), Desejo (trishna), Apego (upadana), Vir a ser (bhava), Nascimento (jati), Decadência, extinção (jara-marana). Já os seres sencientes, são providos de 5 elementos adicionais que formam a consciência, estes são chamados de skhandas: Forma (Rupa) – nosso corpo, incluindo os cinco sentidos e sistema nervoso; Sensações (Vedana) – agradáveis, neutras ou desagradáveis; Percepções (Samjna) – que faz nomear, perceber, definir; Formações Mentais (Samskara) – a formação na mente como o medo, uma flor e por último a Consciência (Vijnana) – sementes armazenadas das formações mentais. (HANH, 2001)
Portanto, e enfim, todos os fenômenos, quaisquer que sejam, são constituídos dentro deste mecanismo e estão fadados à lei da impermanência (anitya), condicionados ao sofrimento (dukkha) e desprovidos de natureza intrínseca (anatman). O Budismo (e por conseguinte o Buda) não vê, portanto, distinção entre os seres. As distinções e discriminações são criadas por uma mente dual que não compreende os fundamentos e condições dos fenômenos e não consegue realizar anitya, dukkha e anatman. Para o budismo, a mente discriminatória é a mente apegada à uma natureza intrínseca e permanente, ou seja, a um eu-imutável, e que por sua vez é a fonte causadora de sofrimento. O ser-humano discrimina masculino e feminino através de percepção da forma apenas, discrimina também, aquele que está fora de si mesmo, o diferente, não enxerga a relação de fenômenos interdependentes que co-existe numa relação de condicionamento, causas e consequência: eu sou, porque tu és, eu não sou, se tu não és. Os fenômenos não existem isoladamente. Neste sentido, para o Buda, gênero é uma criação da mente discriminatória, é vazio de significado e não tem natureza intrínseca.
As questões que envolve o surgimento de uma comunidade budista para falar sobre assuntos LGBT+ é geralmente questionada pela própria comunidade uma vez que para um praticante budista é fundamental a realização dos conceitos de anitya, dukkha e anatman. Sendo assim, para o sangha como um todo é natural a não discriminação de gênero. Para muitos, leigos ou monges, criar um grupo budista LGBT+ criaria uma segmentação onde deveria haver genuinamente uma união.
Mas vamos nos atentar a alguns importantes fatos sociais comuns ao Brasil. Os números de homicídios por homofobia no país aumentam ano a ano. Um relatório produzido pela ONG Grupo Gay da Bahia, contabilizou 420 mortes no ano de 2018. Segundo o mesmo relatório, em 2017, um LGBT+ morreu a cada 20h por motivação homotransfóbica. O documento nos conta ainda que o estado que mais mata LGBT+ é São Paulo, seguido de Minas Gerais e Bahia. Apenas em Junho de 2019 o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a criminalização da homofobia enquadrando como tipo de crime de racismo, o que coloca a população LGBT+ ainda sem leis própria, embora seja uma grande conquista para a diversidade brasileira. O casamento homoafetivo não é lei, mas é direito conquistado e garantido pela justiça, declarado pelo STF em 2011 e publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2013, que permite que todos os cartórios registrem tais uniões legalmente.
Mas os direitos não são iguais pra todos LGBTQIA+, a população transgênero é a que mais sofre dentro da diversidade brasileira. A expectativa de vida de travestis e transexuais é de 35 a 40 anos, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e que uma pessoa trans é assassinada no Brasil a cada 48h. Sendo assim, os números de transfobia são ainda mais agressivos. Uma outra pesquisa realizada sobre suicídio, a Pesquisa Nacional de Discriminação Transgênero que entrevistou 6.500 pessoas trans, identificou que a tentativa de suicídio dentro deste grupo é de 41% das pessoas, ou seja, dez vezes a taxa média de tentativa de suicídio (4,6%).
Os motivos para tamanho sofrimento é uma sociedade completamente despreparada para conviver com a diversidade sexual e de gênero, com ausência de aparelhagem legal que proteja direito de todos igualmente de diversas fobias e injúrias contra o diferente. Ausência de valores éticos e morais que conduzam e orientem ao respeito mútuo e convívio pacífico entre os seres.
Para o um praticante budista, a busca pela cessação do sofrimento não é um caminho solitário nem individual. O caminho do Buda é um caminho da compaixão (karunã), pois é através da compaixão que realizamos a interdependência das coisas e que o sofrimento faz parte do condicionamento inter-relacional dos fenômenos. A busca para encerrar o meu sofrimento parte também da busca para encerrar o sofrimento de todos os seres, tanto quanto for possível.
Em uma entrevista publicada na revista REVER, Pedrinho Guareschi esclarece que é preciso distinguir religião de “instituição” (“igreja”, no texto original), declarando que religiões são iluminações, as religiões são mensagens. “Mensagens absolutamente incompatíveis de serem entendidas em sua totalidade, porque são luzes e por isso, são, até certo ponto, inesgotáveis. São horizontes! Ao passo que as instituições tentam, até certo ponto, dar conta dessa mensagem. Mas como ocorre com toda instituição, nunca dão conta de toda mensagem.”
E é a partir de sentimento e entendimento semelhante que surge o grupo Rainbow Sangha no Brasil. Uma iniciativa do reverendo Jean Tetsuji, sacerdote de uma das escolas budistas japonesas que se estabeleceram no Brasil, a Shinshu Otani-ha (da tradição da Terra Pura), homem cis, homossexual, que criou um grupo de apoio religioso para discutir a pauta da diversidade sexual e de gênero sob o ponto de vista espiritual da doutrina budista e também como espaço de acolhimento para a população LGBT+.
Com o objetivo de apresentar os ensinamentos do Buda como uma possibilidade de refúgio para todo e qualquer LGBT+ que sofre com sua própria sexualidade ou com sua identificação de gênero, explorando a ideia dos conceitos budistas para reparar a angústia e auto-estima destas pessoas.
Se, como diz ainda Guareschi, “sem comunicação não existe salvação”, o trabalho da Rainbow Sangha se mostra fundamental para o patrimônio Budista brasileiro, procurando construir uma perspectiva ética e moral com menos sofrimento para uma população que ainda é condenada pela sociedade tradicional brasileira. Um trabalho social, que visa uma sociedade com indivíduos que acomodem e acolham uma sexualidade sem culpa, sem pena, sem arrependimento, mas livre, consciente e que respeitem os limites de si e do outro, mutualmente. O budismo pode ser uma via possível para os LGBTs+ vislumbrem mais sentido e propósito em suas vida, para que esta população ganhe ferramentas para resistir e conviver em um espaço de rejeição, mas também com alta capacidade de transformar e adequar a sociedade para sua sobrevivência de forma não-violenta.
O budismo possui toda uma cosmologia e iconografia que acolhe o LGBT com diversas figuras mitológicas que transcendem o gênero, representadas de maneira assexuada, como o caso do bodhisattva Avalokiteshvara (jp. Kannon); também algumas figuras históricas, como monges gays, monjas lésbicas e até mesmo casos de transgêneros são relatados. Os textos budistas relatam seres que mudaram de sexo para atingir a iluminação e até mesmo algumas passagens específicas em que o Buda orienta sobre a mudança de sexo dentro do Sangha (referência). Um universo iconográfico que dá possibilidades de reconhecimento e identificação para todos, um repertório que acolhe e afaga dando respostas para as angústias desta marginalizada população, principalmente à população trans, tão negligenciada em muitas expressões religiosas ao longo da história da humanidade.
E é dentro de um contexto cultural e político tão importante que as razões para o surgimento do grupo Rainbow Sangha se fazem indispensáveis. O grupo hoje conta com reuniões mensais, um website (www.budismolgbt.com.br) e duas redes sociais (Facebook e Instagram), além de um grupo no Whatsapp para manter contato com LGBTs de todo o Brasil para tirar dúvidas a respeito do budismo enquanto possibilidade prática religiosa. Conta ainda com a realização de eventos inter-religiosos com mesas de discussão onde participam outras instituições religiosas, como a Igreja Metodista, Anglicana, Grupos Mormons de apoio à diversidade e religiões de matriz africana como o Candomblé e a Umbanda; grupos que possuem projetos voltados para o acolhimento da comunidade LGBT+, discutindo as diversas questões desta população e a espiritualidade como uma possível resposta para uma vida com mais propósito e sem sofrimento.
O Rainbow Sangha existe e resiste há um ano e vem crescendo em voz e repercussão, e é novamente com as palavras do Guareschi que encerro este texto que, se sem comunicação não existe salvação, a comunicação ainda é a nossa salvação.
Fonte site budismo.info
Nossos agradecimentos deste magnifico artigo a Icaro Matias!
Parabéns pela iniciativa!????
Obrigado Alexandre, um grande abraço!
Parabéns pela iniciativa! Vcs sabem se há algum grupo de lésbicas hinduístas?