Minha Identidade Trans conflita com os ensinamentos Budistas?

Tïtulo Original: Minha identidade transgênero entra em conflito com os ensinamentos do budismo sobre o não-eu?

Autores: Sallie Jiko Tisdale, Narayan Helen Liebenson e Andrew Holecek | postado originalmente no site LIONS ROAR em 31 de julho de 2017.

Tradução: Equipe Rainbow Sangha

[PERGUNTA]

Eu nasci homem-cis, mas depois de muitos anos de confusão, cheguei à conclusão de que na verdade sou uma mulher-trans e agora estou procurando uma cirurgia de redesignação sexual. Como budista, sinto-me em conflito entre os ensinamentos sobre o Não-Eu e esse meu sentimento inabalável de que há uma verdade profunda e oculta sobre mim que preciso expressar. Estou errado em abraçar esse sentido de um verdadeiro eu?

[RESPOSTAS]

– Sallie Jiko Tisdale: 

O vazio do “Eu” é parte do que enfrentamos na prática budista. É de fato esta noção de vacuidade que nos permite trabalhar com nosso carma, esclarecer nossas vidas e despertar para a verdade. Mas desenvolver seu “Eu” mais autêntico também é parte deste processo. O Buda aconselhou seus seguidores a serem indiferentes aos seus corpos, mas também ensinou a usarem seus corpos como ferramentas parar o despertar. A própria história do Buda nos ensina que os extremos não conduzem à verdadeira compreensão. Não é algo bom ficarmos infelizes, adoecidos ou em guerra conosco mesmos.

Como seres humanes, estamos sempre fragmentados de alguma forma; nossa existência é marcada pela ignorância e confusão. Com o tempo, passamos a aceitar o carma de nosso nascimento, os dons e desafios que herdamos. Nós nos esforçamos para nos tornarmos inteiros, para encontrar aquelas partes do Eu que precisam de atenção e apoio. Nós nos tornamos dispostos não apenas a aceitar nosso carma, mas também a dançar com ele – arriscar a vulnerabilidade, examinar nossos lugares sensíveis, ficar desconfortáveis e, finalmente, defender a nós mesmos e dizer: “Isto é quem Eu sou”.

Como você diz, você sente uma “verdade profunda e oculta” sobre si mesmo e que precisa expressá-la. Eu acho que todo mundo se sente assim. De uma forma ou de outra, desejamos ser vistos e reconhecidos tal como internamente sabemos como somos. Lutamos para encontrar coerência entre nossa experiência interna e nossos relacionamentos externos. Assim, trabalhamos para fazer com que corpo físico e nossa aparência tenham coerência tal qual o Eu que sentimos – por meio de nossas roupas, como usamos nosso cabelo, como falamos e nos posicionamos, a quem escolhemos como amigos e colegas.

Cada um de nós tem genitais, mas eles não determinam o gênero. Nosso gênero — masculino, feminino ou intersexual — inclui forças tão díspares como genética, família e cultura. A fonte da identidade transgênero é misteriosa porque não entendemos como todas essas forças trabalham juntas. Mas a incongruência que você sente não é tão incomum. Eu chamaria atenção apenas para o fato de essa identidade que você sente não é o seu “verdadeiro Eu”. O “verdadeiro Eu” budista é muito mais do que nossa existência enquanto fenômeno. Esse “Eu” não depende do corpo físico, do intelecto, da prática espiritual ou de relacionamentos; Esse “Eu” não pode ser impedido por nenhum fenômeno.

O que você descreve é o que considero como “Eu autêntico”, a necessidade de viver neste mundo da maneira mais plena possível. Para alguns de nós, pode significar algum acessório ou um corte de cabelo diferente; para outros, pode significar vestes monásticas e cabeça raspada. Para um certo número de pessoas, será necessária uma cirurgia de redesignação de sexo. Então, sim, abrace seu “Eu autêntico” completamente. Se isso significar que você precisa fazer alguns ajustes práticos, você terá todo apoio que precisar.

– Narayan Helen Liebenson: 

O ensinamento de “anatta” (não-Eu) não diz que não há um Eu; ele afirma que nada condicional pode ser apontado como sendo quem ou o que você é. Dado que nenhum aspecto do ser pode ser identificado no sentido de algo contínuo e independente, para mim, os ensinamentos de compaixão e bondade amorosa podem ser seus guias.

Você não menciona sobre dor, mas é difícil imaginar que você tomou essa decisão de forma leve e sem nenhum grau de angústia em algum momento. Este impulso que você sente para viver como você sabe que és, é uma combinação da sua realidade interior com a sua situação exterior na qual você vive. O que há de errado nisso? Aceitar-se como se é e ser seu verdadeiro amigo é um aspecto essencial no caminho para a libertação interior.

Eu vejo esta questão mais como um conflito entre o que você conhece e o que você ouviu nos ensinamentos. A questão é, ao se manifestar de maneira diferente neste mundo, você pode viver os ensinamentos plenamente? Eu diria que sim, porque após a cirurgia, você não viverá em um contínuo conflito ou sentirá uma sensação de separação entre o gênero que você se reconhece e a maneira como os outros abordam você. Livre da ideia de um “Eu” fixo, contínuo e independente, há uma grande liberdade possível na fluidez e na flexibilidade de todas as coisas.

– Andrew Holecek:

Meu coração está com você. Questões de identidade em qualquer nível são dolorosas. Mas, felizmente, os desafios também são diretamente proporcionais ao potencial de transformação – quanto maior o obstáculo, maior a oportunidade. Sua pergunta é uma oportunidade maravilhosa para explorar a relação entre a verdade absoluta e a relativa, ambas as quais precisam ser respeitadas para abordar plenamente as questões que você expõe. Nós encontramos nosso caminho para o absoluto através do relativo e não o descartando, sua coragem em enfrentar a si mesma com tanta honestidade nesse nível relativo pode levá-la longe ao longo do caminho.

Para nos tornarmos Buda (nível absoluto), primeiro temos que nos tornar plenamente humanos (nível relativo). Podemos então descobrir que ser plenamente humano é ser um Buda (a impossibilidade de separar relativo e absoluto). Um fio que conecta essas duas estações ao longo do caminho é “maitri” ou bondade-amorosa para consigo mesma. Então, primeiro e antes de tudo, seja gentil consigo mesma, o que por si só é transformador.

Se o Buda estivesse aqui, ele gostaria que você fosse feliz. Se tornar-se uma mulher realmente te faz feliz, ele encorajaria isso. Mas ele também poderia sugerir que seu desejo por mudança aponta para algo ainda mais profundo, como sua própria pergunta implica. Portanto, embora seja importante respeitar o relativo, a força do budismo se encontra nos próprios ensinamentos sobre o absoluto. Essa é a perspectiva que quero enfatizar.

Sua pergunta me sugere que você sente falta de algo do nível absoluto, e que essa saudade está se expressando no nível relativo. Isto não quer dizer ignorar seu desejo de encontrar uma forma verdadeira, mas para ajudá-la a colocar as coisas em perspectiva. A redesignação de sexo pode ser apenas um passo para a recuperação do “Verdadeiro Eu” que você está procurando.

Entre várias maneira, esta é a questão central da jornada espiritual. (…) “Quem sou eu?” Não saber a resposta é a fonte de todo o nosso sofrimento; descobri-la é a base da nossa libertação.

Até que despertemos para quem realmente somos, todos somos vítimas do roubo da identidade original. Você originalmente pensou que era um homem, apenas para descobrir que na verdade é uma mulher. Bom para você. Você está olhando para dentro e tentando recuperar uma identidade mais verdadeira. Mas o finito não pode conter o infinito; se nos identificarmos com essa forma, sempre sentiremos que falta algo.

Como você pode trabalhar com o nível absoluto? Mesmo enquanto você avança com sua cirurgia, quando surge o pensamento de que você é uma mulher – ou um homem – tente se identificar com o espaço entre esses pensamentos. Deixe esses pensamentos irem e virem como nuvens flutuando no céu aberto. Você é o céu. Refugie-se nisso. A partir dessa perspectiva aberta, você se relacionará adequadamente com tudo o que surgir em seu coração e sua mente e não se perderá em nenhuma forma. Portanto, abandone até mesmo o conceito de que “Meus pensamentos sou eu”.

Pegue seu sentimento inabalável de que existe uma verdade mais profunda e use-o para impulsioná-la em direção a essa verdade. Essa sensação é linda. Deixe sua escolha e suas perguntas servirem como catalisadores para uma investigação mais profunda. Uma vez que você se identifique adequadamente como não-Eu, você naturalmente expressará um desapego de si mesma como compaixão e completará seu anseio em qualquer forma. Aí é quando você realmente brilhará.

Andrew Holecek completou um tradicional retiro de três anos sob orientação de Khenchen Thrangu Rinpoche e é autor de “The power and the pain, preparing to die”.

Narayan Helen Liebenson é professora-orientadora no Cambridge Insight Meditation Center.

Sallie Jiko Tisdale é professora leiga de Dharma no Dharma Rain Zen Center em Portland, Oregon.

Comments (1)

Thiago Henrique Nunes dos Santos

Texto bem-escrito, parabéns.

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