texto escrito pelo monge Yakusan e o praticante leigo Ícaro Matias,
Muito se fala hoje do perigo que é uma pessoa trans “ousar” tentar sobreviver no Brasil, em se tratando do país que mais mata pessoas trans no mundo*, e onde a expectativa média de vida de uma pessoa trans é de apenas 35 anos. Porém, o que de fato a sociedade, o que inclui a própria comunidade LGBTQIA+, está fazendo pelo direito à vida e cidadania de pessoas trans?
Nas palavras de Sallie Jiko Tisdale, professora leiga de Dharma no Dharma Rain Zen Center em Portland, sobre pessoas trans e cirurgia de redesignação sexual:
Encontrar a adequação entre a vivência do Eu e como esse Eu se expressa pelo mundo faz parte da jornada de todo e qualquer ser humano, seja ele cis ou trans. Garantir o direito essencial à existência é item básico para alguém que gostaria de se descrever como minimamente altruísta ou empático. Mas não compassivo, pois ser compassivo é ir além.
Ser compassivo requer ações efetivas para além de plataformas digitais e redes sociais. Requer preocupação constante acerca da segurança e saúde mental do outro e principalmente de populações tão negligenciada, marginalizadas e oprimida como as pessoas trans. Requer o mínimo de compreensão acerca desse tipo de existência/resistência de vida. Requer a alternância entre o silêncio do que eu acho que não sei ou do sofrimento que não consigo anular que acabam em gritos altos quando uma opressão ou injustiça acontece.
Um dos ensinamentos contidos no caminho Budista, diz respeito ao modo como a gente fala e está contido entre as disciplinas das práticas éticas e chama-se basicamente “Fala Correta” ou “Fala Apropriada”. A maioria das pessoas está acostumada a ver o Budismo como um sistema de práticas meditativas, do ensinamento da compaixão, como já falamos acima ou da não-violência. Mas na verdade, o Buda nos ensinou que antes mesmo de aprendermos a meditar, é preciso que a gente consiga viver de uma maneira ética. A ética budista não é feita por julgamentos de valor subjetivos. A ética budista tem a ver com acabar com o sofrimento de si e do outro. Desta forma o certo ou o errado, ou seja, o ético, tem como parâmetro o sofrimento. Para o Buda, a prática das disciplinas éticas são extremamente importantes e devem fazer parte constante do nosso dia-a-dia.
A nossa comunidade precisa urgente entender a importância de uma fala correta e apropriada. Nós precisamos sim medir cada palavra que expressamos, pois a nossa fala, mais vezes do que imaginamos, ofende, agride, oprime, chateia, entristece e faz o outro sofrer. A Transfobia é uma espécie de fala incorreta. Claro que muitas vezes vai para além da fala e tem como consequência uma ação física que causa sofrimento. Além disso, é claro que a Transfobia começa no pensamento, com preconceitos e ideias erradas sobre o outro. Porém, em uma sociedade cada vez mais virtualizada, o poder das palavras se tornam ações com graves consequências. A própria cultura do shade (a famosa matação, ou piadas indiretas, sarcásticas e ofensivas com o outro) tão romantizada em algumas mídias LGBTQIA+, mas que pode ser extremamente perniciosa para quem busca o mínimo de aceitação de sua existência.
Quando o Buda explicava sobre o uso da fala correta, ele dizia sobre como as pessoas deveriam evitar a “falsa tagarelice”, ou seja, falar demais, falar o que não deve, fazer fofocas, falar o que não é necessário. Hoje, cada vez mais as pessoas querem ter uma opinião sobre tudo, criticar qualquer assunto ou pessoa. A internet virou um verdadeiro tribunal, onde as pessoas oprimem umas as outras, julgam umas as outras e infelizmente despertam para o ódio e a agressão. Antes de nós termos coragem de despertar o mal que há dentro de nós, só porque estamos atrás de um computador. É preciso que a gente lembre diariamente de ter a coragem de despertar para o bem e procurar utilizar a fala correta e evitar a falsa tagarelice.
Para nós LGBTQIA+, é preciso mais do que nunca ter uma fala de acolhimento, uma fala compassiva, uma fala de bem-querer, uma fala de empoderamento uns de outres, uma fala de incentivo e estimulante, uma fala de inspiração, e principalmente uma fala de cuidado e atenção ao sofrimento de outre. Nossa comunidade incorporou as agressões que sofreram da sociedade heteronormativa e ultimamente vem replicando estas agressões uns em outres, e é em situações como estas, que deixamos a raiva e a frustração nos dominar, que atacando outre, nós levamos elu ao limite do sofrimento. Muites, ao sofrer ao extremo, acabam encerrando suas vidas, acabam não encontrando um mundo pra viver. Em meio a tanta falsa tagarelice, que nós passemos a ouvir mais e nos calemos quando não houver de fato algo bom, correto e apropriado para falar.
Hoje estamos falando sobre pessoas trans e transforbia, mas é importante aplicarmos tudo isso a outras interseccionalidades como cor da pele, tipo de corpo, ou estrato social.
É preciso fazer muito mais que usar bandeiras coloridas e se dizer simpatizantes das causas LGBTQIA+. Urge instituirmos uma cultura do respeito para que todas as formas de existência, incluindo a nossa própria, possam existir sem medos, sem opressões, com oportunidades de cidadania e de que todas as pessoas sofram cada vez menos de violências estruturais arraigadas na sociedade. É preciso que a comunidade LGBTQIA+ revise os seus meios expedientes e habilidades de expressão. É preciso quebrar essa cadeia de replicação de opressão e violência a quem consideramos “abaixo”, “menor” que o Eu e seus privilégios sociais. Não tem acima, nem abaixo — todos morremos um pouco quando alguém morre apenas por ser quem é.
Este texto é dedicado à passagem de Paulo Vaz (1985-2022), que era homem trans, militante e influenciador LGBTQIA+ e tirou sua própria vida ao meio de tanta transfobia e falas incorretas/agressivas na vida e nas redes sociais.
*Trans Murder Monitoring, TGEU, 2022. Link: [https://transrespect.org/en/map/trans-murder-monitoring/]