O enfrentamento na pandemia.

Prancheta-1-1

Olá, me chamo Gustavo e sou devoto do Budismo Shin ordem Shinshu Otani da tradição Terra Pura. Sou de Foz do Iguaçu (PR) e tenho 21 anos de idade. Venho aqui relatar um pouco das tempestades que enfrentei este ano, tempestades estas que culminaram em depressão, esta foi sem dúvidas a luta mais importante que já enfrentei.

Em março deste ano, novas condições me impuseram a me mudar da casa de meus pais, recebi ajuda de amigos próximos e de minha namorada para encontrar abrigo. Era início do período de quarentena contra o COVID19, portanto não havia oportunidades fáceis de emprego e moradia. Frustrações vieram atrás de frustrações. O tempo passava, meu dinheiro se reduzia com deslocamentos. Encontrava-me totalmente inseguro, sem saber ao certo se teria no dia seguinte onde dormir, como me alimentar ou se ao menos estaria a salvo da pandemia que se alastrava. Todos estavam em condições difíceis, qualquer ajuda era certamente temporária e limitada as dificuldades impostas pelo vírus. 

Minha namorada, percebendo minha profunda desesperança e tristeza, vasculhou o site da minha escola budista até encontrar um texto que eu havia comentado com ela há muito tempo, uma fábula tradicional do Jodo Shinshu chamada “O Oceano”, a qual fala sobre a exaustão e as dores que sentimos quando tentamos nadar contra a correnteza dos acontecimentos que fogem de nosso controle e da libertação assegurada pelo nosso desprendimento dos próprios esforços em domar a nossa própria vontade este grande oceano chamado vida. Quão limitados somos nós que tentamos navegar por este enorme oceano! Eu não tenho controle de nada, não tinha nenhuma forma de saber aonde ou como estaria no dia seguinte, a única coisa me restava era me entregar e confiar a essa forte correnteza que me conduzia, aguardar pacientemente pelo aparecimento de oportunidades que me ajudassem a superar as dificuldades que não possuía controle. E assim eu fiz.

Oportunidades surgiram aos poucos, e, por fim, obtive trabalho, casa para morar e meu relacionamento amoroso se fortaleceu e amadureceu rapidamente ao enfrentarmos juntos esse período conturbado. Mesmo depois com problemas pequenos como contas a pagar e cansaço depois do trabalho, eu me encontrava profundamente irritado, desesperançoso, amedrontado com uma constante paranoia de que poderia perder as condições financeiras e voltar a escala zero: sem moradia, sem comida e completamente inseguro sobre o amanhã. Me sentia cansado, doente e tentei suicídio duas vezes.

Já não tinha mais paciência e nem energia para realizar práticas budistas, mas de alguma forma eu sabia que ali, em frente a imagem do Buda Amida, seria sempre meu refúgio seguro nestes momentos de desespero. Sentei-me sobre meus joelhos, segurei as escrituras que diariamente recitava e cantava com vigor, e reli as palavras do Mestre Shinran, o fundador do Budismo Shin. Lendo novamente seus ensinamentos no Tannishô, comecei a chorar, e pude ser tocado por um essencial ensinamento de Shinran: Eu não tenho controle de nada, a única coisa que me resta é abrir mão da minha fútil tentativa de assumir controle da correnteza. Posso nadar com ela, mas não a controlar conforme meu desejo. Então me entreguei ao Namu Amida Butsu, a expressão do limitado “eu” que se entrega e se abre ao absoluto tomando consciência de ser parte do grande fluxo da Vida Imensurável e de ser permeado pela Infinita Luz de sabedoria que tudo permeia. 

Foi assim então que mais uma vez eu morri, morri por alguns instantes do meu mundo interno de ilusões e dores e nasci para um mundo de sabedoria onde pude reavaliar minha existência por um olhar mais amplo. Larguei meus fardos maiores que minha capacidade de carregá-los e me fui conduzido ao mundo da verdade onde encontrei paz e me senti acolhido com todas as minhas inseguranças, limitações e imperfeições. Em seguida voltei ao mundo das ilusões, ainda imperfeito mas com novos olhares que permitiram me libertar das dores que vivenciava naquele instante. Não fui miraculosamente curado por Buda, mas seus ensinamentos me mostraram uma realidade maior que minha limitada percepção de si e de toda essa teia de causalidades a que se referem a Vida. 

Em meus períodos de tristeza e insegurança, colocava toda a responsabilidade dos acontecimentos sobre mim mesmo, me culpabilizava por não conseguir emprego, por acreditar ser insuficiente em meu relacionamento, por possuir limitações de saúde, por não poder controlar todos os gastos…tentando carregar o mundo inteiro em minhas costas, como poderia não adoecer? Às vezes não fazemos isso? Não nos cobramos demasiadamente sobre coisas que temos pouca ou até nenhuma responsabilidade a ser cobrada? Como poderia eu criar um emprego que me contratasse a partir do nada ou impedir que quaisquer imprevistos financeiros surgissem ao longo de um mês? Era como se cobrar e angustiar pelo cair da chuva ou pelo nascer do sol. 

Enquanto pensava que todos os problemas eram minha culpa não poderia me libertar da exaustão de meus próprios esforços. Esse foi o remédio que o Buda me ofereceu: renunciar o meu próprio esforço em ilusoriamente tentar dominar e me responsabilizar por todos os aspectos da minha vida e aceitar e me deixar conduzir pelo poder dessa grande correnteza de Vida Imensurável que sempre me conduziu e vivificou.

O Budismo Shin ensina que vivemos interconectados e interdependentes com inúmeros seres vivos e imensuráveis acontecimentos, graças a essas enormes teias de fatores e elementos torna-se possível nossa existência e a existência de tudo que experienciamos na nossa vida. Todos dependemos de causa e condições para nos movimentarmos, nos alimentarmos, crescermos, trabalharmos, estudarmos, nos relacionarmos e até mesmo respirarmos. Sem as árvores não teríamos oxigênio, sem os animais e os trabalhadores do campo não teríamos alimentos, sem o trabalho de inúmeras pessoas não teríamos nem mesmo o que vestir. Este é o ensinamento a que Buda se referia como Originação Dependente. A esse todo de causalidades nós pertencemos, sofremos quando não evidenciamos essa realidade na nossa existência, com isso podemos agir com ganância ao tentarmos obter tudo o que desejamos de uma realidade que pode não atender a nossas expectativas, e também com ódio culpando “deus e o mundo” pela vida não ser como exigimos que seja. 

Com a integração de si a esse todo, despertamos do mundo de ilusões e dores que não parecem ter fim (Samsara) para o mundo do despertar (Terra Pura), uma realidade além do espaço e tempo convencionais onde cada circunstância é capaz de nos ensinar e com isso nossas ilusões são aos poucos dissipadas. Não alcançamos a Terra Pura pelo nosso próprio esforço, o Buda que vive nela nos estende sua mão e nos chama do interior de nossos corações que anseiam se libertar das amarguras da vida para despertar para essa Realidade de Vida e Luz Infinitas para então sairmos de si e nos reintegrarmos ao todo, respondemos ao seu chamado pelo Namu Amida Butsu. Buda Amida, a personificação de toda sabedoria e compaixão budista, não julga, não faz discriminações, sempre está conosco não importa quando, onde, como estejamos ou pelo que estivermos passando sempre nos estende a mão para nos puxar de volta para o mundo do real, sempre se dispõe a nos acolher exatamente como somos e nos conduzir para sua Terra de Paz e Alegria onde podemos nos reencontrar como seres humanos e buscar o significado de nossa existência.

Com esse acolhimento o Buda me abraçou e me ajudou a me perdoar, a me compreender, a reavaliar as circunstancias da minha vida a que estava submetido com um olhar mais amplo e viver os novos dias que se sucederam com apreço e gratidão, afinal, se não tivesse saído de casa como amadureceria e me fortaleceria em tantos aspectos antes ocultos pela não necessidade de refletir sobre eles? Hoje me encontro noivo e ainda mais feliz com minha parceira, percebo hoje que só tivemos a oportunidade de chegar aonde chegamos por meio das dificuldades que encontramos e enfrentamos juntos pelo caminho. Se não tivesse encontrado dificuldades financeiras gravíssimas será que valorizaria o pouco que hoje tenho com o mesmo grau de importância? 

Agradeço todos os dias por cada refeição, por cada dia com minha noiva e por cada noite de descanso sabendo que não conquistei tudo isso simplesmente por minha vontade e esforços, os ventos do Outro Poder sopraram a favor, ou seja, os ventos dessa realidade para além de meus limitados esforços que me nutriram e permitiram que eu vivesse hoje onde e como tenho a oportunidade de viver. Me libertei de todos os problemas? Não, outros surgirão sem dúvida alguma, mas tenho garantido que sempre, nos momentos de alegria e de tristeza, encontrarei meu refúgio no mundo iluminado de Buda que sempre terá suas portas abertas a mim e a quaisquer outras pessoas que nele procurem acolhimento. Que possamos todos encontrar abrigo na Terra da Paz e da Alegria, e aprender a viver uma nova vida de gratidão e constantes recomeços.

Comments (1)

Meu irmão, meu amigo no Dharma Gustavo, obrigado por compartilhar a sua experiência que ressoa comigo e me dá esperança, de verdade. Agora só me falta parar de nadar contra a corrente da vida e esse exercício é só meu, mas tendo o seu apoio será mais fácil. Muito obrigado!

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